segunda-feira, março 13, 2006

Valores dos Povos da Terra

Transcrição da palestra proferida no I Fórum Internacional dos Povos Indígenas em agosto de 2005, na PUCRS, Porto Alegre, RS.

Agradeço, primeiramente, a oportunidade de estar participando deste fórum, sobretudo ao irmão Edson Hutner. Agradeço a todos os presentes neste auditório, a minha família nesta Terra e a minha família Universal, todos vocês. Pois é assim que vejo a todos nós, irmãos de verdade.

Gostaria de pedir, inicialmente, a licença de todos para não falar com microfone. Peço que nos aproximemos mais, pois este pedido tem muito a ver com o que entendo também que devemos valorizar dentre os Ensinamentos destes Povos da Terra.

Em um segundo momento, respeitando o espaço e as suas exigências, faço um apelo para que, mesmo que nesta sala tenhamos um destaque de que é “proibido fumar”, peço que me permitam quebrar por alguns segundos esta exigência. Tenho aqui um instrumento de Medicina Indígena, que é parte integrante dos Costumes destes Povos, em muitas Tradições e que é Sagrado para eles: o Cachimbo, ou Petenguá, na linguagem Guarani. Não vejo sentido, em se tratando de “Valores destes Povos” abrir qualquer fala sem orar, sem reverenciar este Sagrado e para isto, honrando as Tradições, peço que Papá[1], faça a oração para que tenhamos todos a permissão de comungar aqui e receber as Bênçãos da Terra, as Bençãos do Tabaco, do Peta. Saliento que ainda hoje pela manhã, tive mais uma benção que foi uma oração do irmão Álvaro Tukano que tão prontamente me permitiu orar com ele para que as palavras que eu aqui vou expressar, fossem realmente e, sobretudo na linguagem de meu coração, e que todos nós pudéssemos sentir em nossos Corações o que realmente este Fórum está representando[2].

Inicio esta fala com vocês ressaltando que não tenho a pretensão de achar que tenho verdade sobre algo. Tão pouco quero ferir os critérios deste Fórum, porém dentro do que venho nestes mais de 18 anos vivenciando junto aos Povos Indígenas no Brasil e nas Américas, percebo que eles nada têm a “resgatar”. Nós é que temos, pois perdemos a consciência, os valores de quem fomos, quem somos e o que faremos a partir disto.

Aqui no estado do Rio Grande do Sul, venho de minha livre e espontânea vontade, dirigindo-me aos Guarani, aos Kaingang, sempre pedindo licença a eles para visitar, para conversar, pois assim entendo que devamos agir.

Tenho recebido inúmeras bênçãos nesta minha passagem na Terra. Tenho trocado com muitos Pajés, muitas Cuiãs e Karaís (são as mesmas expressões de Pajé) nas Tradições Guarani e Kaingang. Tenham a denominação que tenham, estes Homens e Mulheres são como Sacerdotes dentro de suas Tradições. Agradeço aqui especialmente a Agustín Guzmán[3], por ter vindo do Peru para compartilhar conosco desta Sabedoria Ancestral, bem como Tukano, Papá, e tantos outros que estão no Fórum, e muitos Espíritos aqui presentes de todos os nossos Parentes, Ancestrais e Antepassados.

Esta nossa “conversa” será sempre muito simples de minha parte, não estou aqui com informações, dados estatísticos, tão pouco, científicos. Deixo isto aos peritos neste assunto. Minha abordagem é bem pessoal, subjetiva e somente tenho a intenção aqui de estimular um compartilhamento e troca para que possamos refletir sobre o que são os valores? Valores destes Povos?

Falamos muito em 500 anos, e eu não quero falar dos 500 anos, por que chega a ser uma ironia. Os 500 anos acontecem a cada segundo. As violências, as invasões, os saques na alma destes Povos acontecem a cada segundo, só que nós não sabemos, não nos damos conta! E eles nos ensinam tremendamente, inclusive aqui neste fórum, sobre respeito, sobre como se adaptar ao sistema, como ter paciência. Estes são valores especiais que venho aprendendo e reaprendendo com estes irmãos. Homens, mulheres, crianças. A calma deste povo diante de tantos massacres em sua essência, dos tantos “estupros” morais, físicos, espirituais, dos tantos suicídios, da loucura que muitas vezes se instala por força de tanta violência!

Como dizem os Yanomami ao serem criticados por estarem na beira das estradas: “Que bom que estamos nas estradas e não nos manicômios!”.

Esta frase traduz muitas coisas, mas não estou aqui para prender-me ao passado, nem a culpas. Não creio que isto leve a parte alguma, mas sim, a buscar soluções! Venho trabalhando em cima desta questão, da consciência da terra, dos valores dos Povos da Terra que não são somente indígenas, somos todos nós! Porém o indígena sabe, busca manter, cuidar da Terra. Respeita a Criação e as criaturas da Criação. Respeita os rios, os mares, a Mãe e tudo o que existe! Nós é que nos perdemos! Não entendemos nossa biologia. Não entendemos a Medicina da Terra. Eles sim mantêm, resguardam. Então, não pensem que quando falamos em invasão de terra pelo indígena ele entenderá. Ele só poderá rir, pois ele não invade, ele resguarda.

A questão é muito complexa e aqui não vamos conseguir abordar tudo, é muito! A questão indígena é muito profunda e precisa de muito cuidado e que arregacemos as mangas para realmente fazermos algo!

Temos aqui um momento ímpar neste Fórum. Já participei de muitos fóruns e sempre se debate, se debate, se escreve cartas e tudo mais, mas não se sai com um documento formalizado, registrado, e quero muito e estarei me empenhando para que neste Fórum todos possamos sair daqui com um comprometimento de fato! Documentado, assinado, inclusive, e sobretudo, pelas autoridades!

Nestes 18 anos, venho fazendo um trabalho voluntário junto às aldeias e percebi ser muito complicado conseguir realmente ajudar se não for de forma muito bem organizada, com união. Foi por isto que recentemente fundamos a Ong Yvy Kuraxõ – Coração da Terra, para então, de forma transparente, ir trocando idéias com nossos irmãos indígenas, formatando projetos, indo lá diretamente verificar as suas necessidades e que, na sua forma de pensar e agir, possamos fazer algo juntos. Já temos, inclusive, apoio de indígenas como conselheiros, nos sinalizando o que é prioritário, bem como irmãos de fora do Brasil que sabem absolutamente tudo que temos buscado, com sérias dificuldades muitas vezes, pois nunca houve apoio do Governo por não ser, anteriormente, uma ong. Tomava decisões sozinha, muito embora nunca estejamos sós. Não digo isso para inflar meu ego, apenas para que fiquem cientes da trajetória que percorri até aqui.Quero que repensemos “quem fomos, quem somos e o que faremos a partir disto”, para que possamos entender os valores destes Povos e respeitar, porque os nossos valores, sob meu ponto-de-vista, perdemos.

Nossa sociedade é mais que doente e perdida em seus valores. O índice de suicídios de jovens é absurdo. A depressão é a doença de todos. Vivemos dependentes de remédios, correndo sem saber para onde vamos, por que vamos!

Bem, mas não quero me estender muito mais, pois preciso fazer chegar a vocês o registro de uma carta[4] que a mim coube a representação e leitura aqui, de irmãos Guarani de Santa Cruz de La Sierra na Bolívia e que pedem a atenção de vocês. Passarei a ler esta carta, representando a Aldeia Ñandereko. Não estou falando pelo indígena, mas estou cumprindo um pedido e empenho de palavra em representá-los.

Encerro aqui, agradecendo muito pela paciência! Iporã Eté.
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[1] Um Pajé Guarani de São Paulo.
[2] Neste momento Papá passou a ascender o Cachimbo Sagrado e ao fazê-lo, Liana solicita a todos que pensem profundamente sobre: “O que são valores? O que seriam valores dos povos desta Terra”. E que orassem profundamente naquele momento pedindo consciência, clareza, e o que mais desejassem colocar ali como propósito.
[3] Agustín Guzmán é Presidente da Ong Comunidad Tawantinsuyu – Lima, Peru.
[4] Carta lida durante a palestra, enviada pelos líderes indígenas da Comunidad Guarani “Ñandereko” Kaipipendi Gran Karobaicho, de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. A carta faz referência às várias etnias originárias existentes na Bolívia, entre elas cerca de dezoito mil Guarani discriminados pelos governantes e a sociedade que não conhece a sua existência. O documento está assinado pelas lideranças indígenas da referida comunidade.
[*]Revisão e notas de rodapé por Tatiana Menkaiká.

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